Álvaro Magalhães
O limpa-palavras

Limpo palavras.

Recolho-as à noite, por todo o lado:

a palavra bosque, a palavra casa, a palavra flor.

Trato delas durante o dia

enquanto sonho acordado.

A palavra solidão faz-me companhia.

 

Quase todas as palavras

precisam de ser limpas e acariciadas:

a palavra céu, a palavra nuvem, a palavra mar.

Algumas têm mesmo de ser lavadas,

é preciso raspar-lhes a sujidade dos dias

e do mau uso.

Muitas chegam doentes,

outras simplesmente gastas, estafadas,

dobradas pelo peso das coisas

que trazem às costas.

 

A palavra pedra pesa como uma pedra.

A palavra rosa espalha o perfume no ar.

A palavra árvore tem folhas, ramos altos.

Podes descansar à sombra dela.

A palavra gato espeta as unhas no tapete.

A palavra pássaro abre as asas para voar.

A palavra coração não pára de bater.

Ouve-se a palavra canção.

A palavra vento levanta os papéis no ar

e é preciso fechá-la na arrecadação.

 

No fim de tudo voltam os olhos para a luz

e vão para longe,

leves palavras voadoras

sem nada que as prenda à terra,

outra vez nascidas pela minha mão:

a palavra estrela, a palavra ilha, a palavra pão.

 

A palavra obrigado agradece-me.

As outras, não.

A palavra adeus despede-se.

As outras já lá vão, belas palavras lisas

e lavadas como seixos do rio:

a palavra ciúme, a palavra raiva, a palavra frio.

 

Vão à procura de quem as queira dizer,

de mais palavras e de novos sentidos.

Basta estenderes um braço para apanhares

a palavra barco ou a palavra amor.

 

Limpo palavras.

A palavra búzio, a palavra lua, a palavra palavra.

Recolho-as à noite, trato delas durante o dia.

A palavra fogão cozinha o meu jantar.

A palavra brisa refresca-me.

A palavra solidão faz-me companhia.