Álvaro Magalhães
A portas

1

A porta está fechada.

Um sorriso abre-a.

Uma palavra também

- se for uma palavra-chave.

 

2

Para chegar a outro mundo,

a qualquer mundo,

basta abrir uma porta.

 

3

Batem à porta do céu:

- Quem é?

- Fui eu!

 

4

Os fantasmas batem à porta

com dedos finos de nada,

mas não esperam que a porta

se abra

e passam através dela,

como passa o sol pelo vidro

da janela.

 

5

Não é hoje, não é amanhã,

mas um dia virá em que uma porta

vai bater à nossa porta.

Chegou então a hora de nos

Desviarmos

para a deixar entrar:

“Senhora Porta, pode passar!”.

 

Para onde vai ela a correr?

Vai para a escola,

onde tem muito que aprender.

Para onde há de ir uma porta

estúpida como uma porta?

 

De onde vem ela, sozinha?

Vem do otorrinolaringologista.

Como disse?

Vem do otorrinolaringologista.

De onde há de vir uma porta

surda como uma porta?

Vem contente como um sino:

o médico receitou-lhe

uma campainha.

Agora já lhe podem tocar.

 

6

Sem portas não havia

a palavra intimidade

nem a palavra privacidade

nem a palavra casa.

 

Casas também não havia.

Quem é que as queria

se não se podia entrar nem sair delas?

 

Também não havia janelas, telhados, varandas.

Talvez não houvesse ruas

e, sendo assim, também não havia cidades.

 

O mundo, que é só um, ficaria parado.

Não se podia entrar em lado nenhum.

Não se podia sair de nenhum lado.

 

Sem portas nada acontecia.

Também não havia segredos

Porque não havia onde os guardar.

E não nasciam nem morriam pessoas

porque para nascer e para morrer

também é preciso passar uma porta.

 

7

Ninguém se lembra

que a porta de casa tem duas caras:

a de dentro e a de fora.

Se uma ri, a outra chora.

 

A de dentro está aconchegada,

sente o calor da lareira e das pessoas,

sabe o que há para o jantar,

cheira e vê as coisas boas.

 

A de fora dorme à chuva,

gela de frio e de tristeza.

Recebe os golpes do vento,

o chichi dos cães vadios,

e as pancadas do carteiro,

que bate sempre três vezes,

mais a perícia dos ladrões,

que não batem nenhuma.

 

A cara de dentro

ouve o choro dos bebés,

o silêncio dos mortos,

o sono dos gatos.

 

A cara de fora

ouve as conversas dos vizinhos,

que lhe entram por uma fechadura

e lhe saem por outra,

e a lengalenga dos bêbedos

que passam de madrugada

com um fardo de amargura

e os bolsos cheios de nada.

 

A cara de dentro conhece as pessoas por dentro.

A de fora só as conhece de passagem

e mesmo assim abre-se para as deixar passar.

Como forma de agradecimento

batem-lhe a qualquer momento.

Por isso é que ela às vezes se zanga

e fecha as pessoas fora de casa.

 

Agora um segredo: ficam a saber

que as caras da porta não são muito dadas,

o que não admira: não se podem ver.

Estão sempre de costas voltadas.

 

As duas são a porta da casa

mas a de fora vive na rua

e a de dentro é quem lá mora.

 

Ninguém se lembra que a porta de casa

Tem duas caras.

Se a de dentro ri, chora a de fora.