Nesse tempo inicial eu sorvia com os olhos abertos
a vida que me cercava
e bem depressa descobri que não podia confiar
no meus olhar,
porque era míope e astigmático.
Quem me deu a boa notícia foi um médico
que sabia gerir a luz e o silêncio
e as letras na parede bafienta do fundo do consultório .
Nesse tempo em que me descobri
único e diferente
porque precisava de outros olhos
para enxergar um mundo mais nítido
descobri que a Primeira Guerra
com seus braços tentaculares
tinha apanhado João
filho da Ana de Jesus e de pai incógnito,
o rapaz mais rijo da aldeia,
que era noivo da Carolina
filha mais velha da Amélia tecedeira e do Celestino ,
barbeiro de profissão
e exímio capador de porcos.
A guerra
sugou o soldado João para a Batalha de La Lys,
na longínqua França.
Mas teve sorte, teve muita sorte, o filho da Ana .
As armas dos alemães não o mataram
só lhe tiraram a perna direita,
que ficou definitivamente perdida nas trincheiras.
Quando voltou da guerra,
João trouxe uns olhos espantados,
um cantil furado, inútil
e uma bota muito bem engraxada .
O Ramos ,
que era um carpinteiro dado à poesia
com madeira
transformou um naco de lódão
numa bela perna,
redonda e hirta,
leve ,
envernizada
e ofereceu-a a Jesus
que andava confuso e tinha insónias.
Mesmo assim, a Carolina
filha da Amélia tecedeira e do Celestino ,
barbeiro de profissão
e exímio capador de porcos.
terminou o noivado com Jesus.
Disse-lhe que era muito friorenta
e tinha o direito de amar um homem completo.
In “ Barricadas de Estrelas e de Luas,- Antologia Poética no Centenário da Primeira Grande Guerra” , Tropelias e Companhia