António Mota
Um cão sem nome

Quando eu escrever um texto

sobre o meu cão,

hei-de preencher mais de mil linhas.

Embora eu nunca tenha contado mil linhas

acho que mil linhas, devem ser linhas

e mais linhas e mais linhas e mais linhas.

 

Quando eu escrever um texto

sobre o meu cão,

hei-de usar um lápis novo

com o bico muito bem afiado.

E prometo que não começo a rilhá-lo

Para descobrir o gosto bom da madeira

 

Quando eu escrever um texto

sobre o meu cão,

hei-de escolher um caderno novo

com folhas brancas .

Brancas como o açúcar branco

brancas como a farinha branca

brancas como o feijão branco

                      (embora eu goste mais de feijão preto)

brancas como a neve

                      (embora eu nunca tenha pegado em neve).

 

 

Quando eu escrever um texto

sobre o meu cão,

hei-de sentar-me na mesa da cozinha

junto do meu cão.

e depois começarei a  escrever

muito concentrado.

Se não conseguir escrever nada engraçado

já sei quem é o culpado:

é o meu cão, que não me deixa escrever

sempre a pedir-me o lápis,

se calhar pensando que aquilo é

um gelado encarnado.

 

Agora reparo que já escrevi imenso

E ainda não disse nada sobre o meu cão.

 

O meu cão é espectacular.

Anda sempre atrás de mim

dorme na  sala de aula

entra na cantina

na papelaria

no carro

no comboio

no cacilheiro

no autocarro

na caixa do correio

na  minha mochila

no hipermercado.

 

O meu cão é extraordinário

Pode ter o tamanho de um touro

ou ser mais pequeno que um rato.

E em dias de muito sol

ganha asas e voa como as borboletas

rindo como um palhaço.

 

O meu cão é especial.

Já foi polícia e bombeiro

e guiou uma ambulância do 112 B

( o 112 B

salva todos os bichos

apedrejados

maltratados

atropelados

abandonados.)

 

O meu cão é sensacional:

não precisa de comer

não pede uma bola para brincar

não precisa de beber

não quer um osso para roer.

 

O meu cão ainda não tem nome.

E eu  não quero que ele se chame

leão, bobi,  lulu,

fofinho, joli, furão

e outros nomes estranhos.

 

O meu cão ainda não tem nome.

Mas eu sei que é

 o cão mais verdadeiro

mais bonito e companheiro

da minha imaginação.